12. Documentário: entre a arte e a política

A manipulação das imagens, com seus usos político-ideológicos, foi uma grande preocupação durante o século 20, desde as primeiras teorias do cinema e da comunicação. Como consequência, a presença de certo ceticismo imagético foi responsável pela importante perda da inocência no audiovisual. Mas, por outro lado, as reflexões desconstrucionistas sobre as imagens documentais geraram contínuas resistências em torno das relações entre o documentário e a realidade social, gerando efeitos na realização cinematográfica, na crítica e entre os espectadores. Num processo que culminou no desconstrucionismo contemporâneo mais radical, a “vida” e a “realidade” tornaram-se, para muitos, referenciais inalcançáveis e abstratos. Em suma: para o cinema, o mundo “não importa” ou mesmo “não existe”, apenas os filmes, a representação e a linguagem.

Debates como estes estão em toda a história do documentário. Como um meio híbrido, ele sempre esteve em meio a campos diferentes, na realização e na crítica, na tentativa de explicar a sua “natureza”, as suas particularidades, a sua linguagem e os seus usos. Por isso, foram recorrentes nas discussões acerca do documentário, contraposições tais como “arte x ciência”, “arte x política”, “objetividade x subjetividade” e “informação x experimentação”.

Estes pólos podem ser percebidos nas origens da construção do projeto documentarista. As imagens de caráter documental existem desde a origem do cinema, como nos filmes de Lumière. Depois dos primeiros experimentos mais domésticos, foram enviados cinegrafistas para diferentes cantos do mundo, numa pulsão de tornar visível a materialidade de nosso planeta e de nossa humanidade. A partir de seu potencial imagético, as imagens documentais foram abraçadas, também, como ferramentas ideológicas e/ou informativas, com destaque para os cinejornais e as atualidades. Contudo, foi exatamente a necessidade de se configurar como arte e como linguagem que o fez se definir como um gênero específico e receber o nome documentário.

Esta “fundação” se configura no documentarismo inglês dos anos 30, onde destaca-se o nome John Grierson. Ele acreditava no caráter educativo e propagandístico do gênero- um “púlpito” de onde o realizador educaria as massas. O projeto griersoniano, financiado pelo órgão de Estado inglês Emperial Marketing Board (EMB), era uma resposta ao avanço do totalitarismo na Europa, divulgando massivamente ideais democrático-liberais, como o desenvolvimento tecnológico e a moral do trabalho. Este processo ia na esteira do crescimento dos novos meios de comunicação de massa e nos estudos das teorias da comunicação, com a avaliação da importância dos meios de massa sobre a opinião pública, como aponta Fernão Ramos.

Mas, segundo o autor, o objetivo maior de Grierson apontava para a construção do documentário como uma grande arte, atingido o estatuto já alcançado pelo cinema mudo ficcional. O produtor e realizador inglês conceitua, então, a arte documentarista como “tratamento criativo das atualidades”. As atualidades eram filmes de caráter informativo, jornalístico, educativo, cientificista ou mesmo expositor de “curiosidades”. O projeto britânico queria ir além das atualidades, na utilização de uma linguagem própria, com elementos estéticos definidores de um campo independente, valorizando o documentário como obra artística. Para isso, o documentarismo britânico se valeu de artistas como os cineastas Alberto Cavalcanti, Robert Flaherty, o músico Benjamin Britten e o poeta W.H. Auden e produziu obras com características mais experimentais como Song of Ceylon, de 1934 (de Basil Wright),  Coal Face (do brasileiro Alberto Cavalcanti, 1935) e Industrial Britain (Robert Flaherty, 1931).

Portanto, como aponta Ramos…

“a tensão entre arte e dever, entre e o documentário-arte e o documentário-púlpito, entre o documentário missão cívica e o documentário expressão individual do artista estará sempre presente, marcando a reflexão de Grierson e sendo um dos principais motivos de polêmica no grupo.”

Para Fernão Ramos, “existe a necessidade de analisarmos a tradição documentária dentro de uma dimensão histórica que coloque em perspectiva a análise do contexto ético em que se inserem diferentes modos de representação”. Ramos lembra que “Grierson pensa a missão cívica do documentário utilizando-se do conceito de propaganda. (…) Não existe, portanto, contradição entre proposta documentarista e propaganda dentro do universo clássico da ética educativa”, na contextualização daquele movimento histórico.

Segundo Bill Nichols, uma boa parte dos documentários opera no campo da retórica. Para o autor, os cineastas precisam encontrar modos de ativar a percepção de seus interlocutores (seu público, grupo ou coletividade) sobre um tema com necessidade de atenção. Ele explica que…

“… a retórica é uma forma de discurso usada para persuadir ou convencer os outros de um assunto para o qual não existe solução ou resposta definida, inequívoca. (…) A retórica difere do raciocínio lógico utilizado para chegar a uma demonstração matemática ou a uma conclusão científica; esses processos lógicos tem seus próprios axiomas, e geralmente tratam de problemas para os quais existe uma e apenas uma solução, dado um conjunto específico de suposições iniciais. A retórica também difere do discurso poético ou narrativo, que visa menos nos convencer de uma questão social do que nos oferecer uma experiência estética ou envolvimentos num mundo imaginário. Ainda assim, a retórica pode facilmente usar a poética, a narrativa ou os elementos lógicos. No entanto, esses elementos são utilizados para nos convencer de um assunto para o qual é possível mais de um ponto de vista ou conclusão.”

Portanto, muitos documentários inserem-se dentro dos debates públicos, influenciando práticas sociais e culturais, pressionando por direitos ou decisões políticas, repensando paradigmas, produzindo reflexões, afirmando ou repensando identidades, questionando e denunciando injustiças. Se o documentário trabalha nos contextos onde não há respostas definidas, existe, necessariamente, a abertura para o debate e a dialética.

Contudo, o documentário possui elementos diferentes da linguagem escrita dos livros e das discussões orais (embora ambos sejam fartamente utilizados nos filmes documentais). “As imagens fotográficas não nos dão os conceitos; elas nos dão exemplos”, afirma Nichols. Para o autor, “uma forma corrente de explicar a ascensão do documentário inclui a história de amor do cinema pela superfície das coisas, sua capacidade incomum de captar a vida como ela é (…)”. Tanto os filmes documentais de teses mais claras, como aqueles de uma linguagem mais ambígua, utilizam imagens e sons do mundo para a realização de uma obra artística. Diferente da reflexão conceitual dos livros, atingida através da escrita, o documentário fornece imagens e sons da história, submetidos, todos eles, às percepções, críticas e análises em diferentes épocas e espaços.

Embora tenha se criado uma hierarquia entre filmes mais assertivos e retóricos (vistos como “menores”) de um lado, e os mais abertos e poéticos, de outro (considerados arte “superior”), o interesse estético de um documentário vai além de um plano de intenções. As significações produzidas pelas registros fílmico, portanto, “saltam” de um plano meramente racionalista e literal para um diálogo interpretativo polissêmico, protagonizado pelas imagens-câmera e os sons do filme, onde reside seu interesse histórico e artístico.

Portanto, o filme como documento (de linguagem mais retórica ou mais ambígua) participa, inevitavelmente, de conflitos expressivos presentes na história, sendo fonte para a compreensão dialética de sentidos, num mundo em conflito. Além disso, no cinema militante, as formas de contestação da linguagem e dos processos cinematográfico foram e são realizadas não apenas no sentido formalista mais aparente (no tema e na linguagem, vistos na tela), mas também em diferentes setores da cadeia de produção, como a exibição, debates, a realização coletiva e a distribuição.

*

Fotografia: Coal Face, de Alberto Cavalcanti, documentário que retrata o trabalho de operários das minas de carvão na Escócia

*

Referências Bibliográficas

NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2008.

RAMOS, Fernão. Mas afinal.. o que é mesmo documentário? São Paulo: Senac, 2008.

*

Este artigo faz parte do projeto CineMovimento. Saiba mais

Deixe um comentário

Crie um website ou blog gratuito no WordPress.com.

Acima ↑